Do outro lado, todo mundo é bonzinho.

Eu o esperava há quase uma hora. Era de costume ele demorar, então, toda vez que ia encontrá-lo eu até levava um livro comigo para ler enquanto ele não chegava, mas, dessa vez, a agonia era tão grande que o livro nem chegou perto das minhas mãos suadas. Fiquei andando para lá e para cá, nervosa. A notícia que eu tinha para dar a Cássio não era nada boa. Foi quando eu resolvi sentar um pouco e me acalmar que eu o avistei no longe. Vinha andando calmo, como se não lembrasse que ao telefone eu dissera-lhe que tinha uma notícia desagradável para dar. Vinha olhando a paisagem, aparentemente com a cabeça no mundo da lua. Vinha, sem dúvidas, cheio de impossibilidades e limitações nas costas, como sempre. E, com certeza, vinha cheirando a álcool, na certa algum barato, dos piores. Quando ele se aproximou, depois de quase tropeçar na calçada, identifiquei o seu 'perfume'. Era vinho dessa vez. Ele me cumprimentou com um beijo torto e perguntou as novidades. Continuava parecendo que ele havia esquecido de que eu tinha algo sério para falar. Tudo bem. Estávamos em frente a um shopping, convidei-o a entrar para tomar alguma coisa em alguma lanchonete, "eu pago" fiz questão de acrescentar antes de ouvir a sua resposta. Entramos em qualquer uma e sentamos ao fundo. Pedi um café, e ele, antes de que eu terminasse de perguntá-lo o que queria, disse que desejava uma cerveja. "Uma cerveja --'". Ai, ai. Enquanto traziam nosso pedido comecei logo o tal assunto...
- Cássio, eu sei que aqui não é lugar psra dizer isso, mas não posso adiar mais. Vou direto ao assunto?
- Sim Rita, nem me lembrava mais disso. Mas pode falar aí que agora fiquei até curioso. - Falou isso com um sorrisinho no canto da boca.
- Bom, com a Lívia no hospital internada, eu até achei que você tivesse pelo menos pensado no que poderia ser. - Lívia, minha irmã. Esposa de Cássio. Estava internada em um hospital fazia dias, grávida e desamparada.
- Não, eu não.
- Bom... infelizmente... Lívia perdeu o bebê. - Aquela frase fria, seca... saiu pela minha boca cortando minha garganta e ferindo-me por dentro.
- Q-que pena... que pena - O seu último 'que pena' saiu quase inaudível. Olhando para o chão ele tentava disfarçar a expressão, e funcionou.
Depois não me perguntou mais nada. Ficou mundo. Bebeu a cerveja, pediu outra. Eu também, acho que pela aparente falta de interesse dele, fique calada. Deixei o dinheiro da conta e saí.
Ainda sem saber no que pensar, fui a pé dar uma volta pela cidade.
Já estava anoitecendo quando avistei alguém conhecido. Era a silhueta de um homem, em um bar de esquina, bebendo e rindo com uns amigos. Era, claro --', Cássio. Nem falei nada, cada um reage como quer ou como pode aos problemas. Se é que era problema para ele.
Acendi um cigarro. O meu isqueiro estava quase seco. Coloquei as mãos nos bolsos, tirando apenas para tirar o cigarro momentaneamente da boca. Andei pensando no relacionamento dos dois. Moravam juntos. Não tinham filhos. Não brigavam muito. Que eu saiba, não tinham problemas com sexo. Ele a visitava no hospital duas vezes por semana. Eu nunca soube de alguma traição. Tudo bem, pelo que parecia. Achei que ele fosse ligar mais para o fato de ter perdido seu primeiro filho, mas, quem sabe, talvez tivesse sido melhor assim.
Depois de uns cinco dias, na minha casa, recebi um telefonema. Era a mãe de Cássio. Ela pedia desculpas pela ausência do filho. Dizia que ele estava mal e se trancava em casa e passava o dia bebendo e vendo tevê, mudo. Para mim, ele parecia muito era bem. Dona Anita, mãe de Cássio, estava bem triste. Perguntei o que era, o que tinha acontecido... Ela me respondeu...
- Nada Rita, não é nada. Apenas acho que meu filho não estava preparado para receber aquela notícia...
- Mas dona Anita, ele me pareceu reagir muito bem...
- É estranho o jeito como algumas pessoas reagem aos problemas não é?
- Concordo, mas...
- Suicidando realmente é o jeito ideal...
- Como assim, do que a senhora está falando?
- Oh, você não soube? --'. Pensei que soubesse, já que toma suas conclusões quanto ao jeito de reagir do meu filho.
- Eu o encontrei rindo e bebendo depois de tê-lo enc...
- Chega, Rita! Cássio se matou noite passada. Já perdi um neto, agora um filho... Ele deixou um 'bilhete' dizendo... 'cansei das minhas impossibilidades e limitações, deixo aí outra chance para Lívia'.
Tão sem sentido, aquele bilhete. Dramático. Exagerado. Ele não era aquele bom e sincero homem que me aparentou ser, ao escutar sua mãe lendo seu bilhete de despedida, ao telefone.

1 comentários:

Lucas Xavier de Melo disse...

Trágico.
E a perda de um filho é motivo para um suicídio? Isso, obviamente, me faz pensar que não foi só isso.
"cansei das minhas impossibilidades e limitações, deixo aí outra chance para Lívia"
É interessante a autora deixar o exato porquê das coisas em aberto, pois ninguém sabe realmente quais eram todas essas impossibilidades e limitações.
Ótimo texto, e muito mais complexo do que parece ser.

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